UMA ANÁLISE SOBRE ASPECTOS JURÍDICOS, NORMATIVOS E ADMINISTRATIVOS RELATIVOS À MODIFICAÇÃO DE AERONAVES |
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1. INTRODUÇÃO | ||||
“Há conhecimentos conhecidos. São coisas que sabemos que sabemos. Há desconhecimentos conhecidos. Ou seja, coisas que sabemos que não sabemos. Mas há também desconhecimentos desconhecidos. São as coisas que não sabemos que não sabemos.” - Donald Rumsfeld1 | ||||
O presente artigo tem por objetivo apresentar uma breve análise acerca das normas vigentes aplicáveis ao processo de modificação de aeronaves no âmbito da Aviação do Exército, bem como propor uma sequência de atividades técnico-administrativas para a implementação de alterações julgadas necessárias. Não se pretende esgotar este vasto assunto, mas apenas apontar de forma sucinta os caminhos a serem percorridos desde a concepção da ideia até a sua materialização e entrega ao usuário final, de maneira a se garantir, acima de tudo, a segurança de voo. A motivação para este estudo inicia-se com a já consagrada “Teoria do Queijo Suíço”, de James T. Reason2, sobre a qual podemos citar os aspectos organizacionais baseados nas normas em vigor no Exército Brasileiro como uma das “fatias do queijo”. A Fig. 12 apresenta o modelo idealizado por Reason. |
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Figura 01 - Modelo do Queijo Suíço | ||||
A Fig. 23 explicita nas suas duas primeiras camadas as falhas latentes ocasionadas por problemas gerenciais, em alto nível, e consideraremos no presente artigo que o processo de modificação de uma aeronave, do ponto de vista da análise normativa, encontra-se entre as referidas camadas. |
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Figura 02 - Contribuições humanas para os acidentes |
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2. DESENVOLVIMENTO | ||||
Estabeleceremos uma hierarquia normativa para uma melhor compreensão do caminho a ser seguido no processo de modificação de aeronaves. Nessa hierarquia, cabe ressaltar que as normas técnicas de engenharia estarão acima das leis (aspecto jurídico), por dois motivos: as normas técnicas de engenharia tratam do comportamento físico, natural dos materiais, e suas regras determinam a segurança do serviço de engenharia, sob um ponto de vista padronizado e, grosso modo, universal; as leis são feitas visando a proteção do indivíduo, da sociedade e das instituições, geralmente determinando que tais normas técnicas sejam rigorosamente atendidas. Portanto, podemos enumerar hierarquicamente: |
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1. Normas técnicas (ABNT, SAE, ASME, ASM, MIL STD, Anexos da ICAO, etc.); 2. Leis (5194/66, 6496/77, 7565/86-CBA, etc.); 3. Manual EB20-MC-10.204 Logística; 4. Modelo Administrativo do Ciclo de Vida dos Materiais de Emprego Militar (IG 20- 12); 5. Normas do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA); 6. Normas Administrativas Referentes ao Material de Aviação do Exército (NARMAvEx); 7. Instruções de Aviação do Exército (InAvEx 1005, 1006, 1009, etc); 8. Normas Operacionais do CAvEx (N Op 09). |
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Partiremos do pressuposto que qualquer modificação em uma aeronave que altere o seu projeto original demanda um esforço de engenharia. Aqui se incluem aquelas alterações que influenciam a operação segura (aeronavegabilidade) ou o comportamento físico da aeronave (inserção, remoção ou modificação de equipamentos externos, de ferramentas auxiliares de voo, de componentes elétricos ou mecânicos, etc). Para tanto, o profissional que gerenciará o projeto de engenharia deverá, necessariamente, ser um engenheiro habilitado e treinado para aquela atividade. A Lei 5194/664 estabelece: |
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Art. 13. Os estudos, plantas, projetos, laudos e qualquer outro trabalho de engenharia, de arquitetura e de agronomia, quer público, quer particular, somente poderão ser submetidos ao julgamento das autoridades competentes e só terão valor jurídico quando seus autores forem profissionais habilitados de acordo com esta lei. | |||
Isso porque somente um profissional habilitado reunirá condições para interpretar as diversas normas técnicas aplicáveis ao projeto. Aqui, cumpre destacar: nem todo profissional de engenharia está tecnicamente preparado para desenvolver um projeto multidisciplinar como são os projetos relacionados à Aviação. Devido a uma série de requisitos de aeronavegabilidade (certificação de projeto: que envolve atividades de avaliação de engenharia, simulações computacionais, testes laboratoriais, voos experimentais; certificação de fabricação; programa de manutenção), a gama de conhecimentos que interagem não permite que todo o processo se concentre num único profissional, por maior que seja a sua experiência. Poderá esse profissional ser, entretanto, o responsável técnico (ou um, dentre outros responsáveis técnicos) pela atividade de engenharia a ser desenvolvida. Para tanto, a Lei 6496/775, em seu Arto 1º, sujeita a “prestação de quaisquer serviços profissionais referentes à Engenharia (…) à “Anotação de Responsabilidade Técnica” (ART)”. Vejamos, ainda, o que diz a Lei 5194/664, sobre exercício ilegal da profissão: |
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Seção III Do exercício ilegal da Profissão Art. 6º - Exerce ilegalmente a profissão de engenheiro, arquiteto ou engenheiroagrônomo: a) a pessoa física ou jurídica que realizar atos ou prestar serviços, públicos ou privados, reservados aos profissionais de que trata esta Lei e que não possua registro nos Conselhos Regionais: b) o profissional que se incumbir de atividades estranhas às atribuições discriminadas em seu registro; (…) e) a firma, organização ou sociedade que, na qualidade de pessoa jurídica, exercer atribuições reservadas aos profissionais da Engenharia, da Arquitetura e da Agronomia, com infringência do disposto no parágrafo único do Art. 8º desta Lei. |
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Face ao exposto, percebe-se que a própria legislação previne que atividades de engenharia sejam desenvolvidas por profissionais não habilitados para tal, ainda que tais profissionais possuam graduação em engenharia. Nesse sentido, a lei atua como uma “camada do queijo suíço”, conforme a teoria de James Reason3. O Manual de Logística6 define a alteração do Material de Emprego Militar (MEM) como Manutenção Modificadora. É o mais alto escalão dentre as atividades do Grupo Funcional Manutenção, e deve ser executada por: instalações fabris (arsenais) do EB; fabricante ou representante autorizado; ou instalações industriais especializadas. |
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3.3.11 MANUTENÇÃO MODIFICADORA 3.3.11.1 A manutenção modificadora consiste nas ações destinadas a adequar o equipamento às necessidades ditadas pelas exigências operacionais e melhorar o desempenho de equipamentos existentes. Relaciona-se também à melhoria dos processos da própria manutenção. 3.3.11.2 A manutenção modificadora envolve as ações de reconstrução, modernização/modificação de equipamentos e sistemas de armas, bem como a reparação e recuperação de conjuntos e componentes. Normalmente, exige projetos de engenharia, pessoal com competências técnicas específicas e infraestrutura fabril (civis e/ou militares). |
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No caso do Material de Aviação do Exército, este somente poderá ser submetido à Manutenção Modificadora por empresas e organizações civis e militares cuja conformidade tenha sido atestada pela Diretoria de Material de Aviação do Exército (DMAvEx), conforme as InAvEx 10057 e as NARMAvEx8, em seu Arto 14, Inciso I, alínea l. Regulamentando o ciclo de vida de todos os MEM da Força Terrestre, as IG 20-129 fixam a ordem e os órgãos responsáveis pelas atividades e eventos que ocorrem com os materiais. A Fig. 39 ilustrará o objetivo das IG 20-12. |
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Figura 03 - Fluxo de atividades do Ciclo de Vida dos Materiais |
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Assumiremos que um material já encontra-se em uso e que foram levantadas necessidades técnicas e/ou operacionais que demandam modificação do MEM. Segundo as IG 20-12: |
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Bloco n° 91 – Manutenção do MEM Responsabilidade: Diretoria Descrição: Sob a orientação técnica da Diretoria Gestora, as OM de manutenção começam suas atividades, como decorrência natural do início de utilização do MEM. Bloco n° 92 – Utilização Responsabilidade: OM Descrição: É a utilização normal do MEM durante o seu ciclo de vida. A OM deve observar o funcionamento do MEM recebido e relatar as deficiências sentidas aos órgãos superiores, pela cadeia de comando, até o nível Região Militar, que transmite as observações à Diretoria Gestora para as providências necessárias. Bloco n° 93 – Identificação de Problemas com o MEM Responsabilidade: Departamento/Diretoria Descrição: O Departamento/Diretoria recebe as informações dos usuários quanto ao comportamento dos materiais. Analisa-se e adota as providências cabíveis. Esgotadas suas possibilidades os problemas de natureza logística ou doutrinária são por ele dirigidos ao EME; os de natureza técnica, encaminhados à SCT. [em termos atuais, “ao DCT”] |
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Por sua vez, as NARMAvEx8 determinam: | ||||
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Art. 14. Com relação ao controle e à gestão do material de aviação, as responsabilidades dos diversos órgãos e unidades da AvEx são as seguintes: (...) V - OMAvEx subordinadas ao CAvEx: (…) e) observar o desempenho do material de aviação recebido e relatar deficiências que possam surgir; |
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As NARMAvEx disponibilizam a Ficha de Informação sobre Não-conformidade Sistemática, cuja “não-conformidade” é definida como a “condição de execução de serviços, a situação de materiais (manuais, normas e procedimentos) ou o funcionamento de produtos (componentes, ferramentas e equipamentos) utilizados pela AvEx considerado tecnicamente deficiente pelo usuário da AvEx, mesmo que não se constitua avaria por pane ou por dano, mas que se apresenta de forma sistemática e provoca limitações ao seu pleno emprego operacional.” Tal relatório poderá servir como modelo para a OM usuária atender ao descrito no Bloco Nr 92 das IG 20-12, visando a implementação de melhorias. A DMAvEx recebe as sugestões de modificações e as avalia. As InAvEx 100610 preconizam: |
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6. RESPONSABILIDADES c. No caso de projetos considerados de pequeno vulto ou de pouca complexidade da AvEx, caberá à Seção Técnica da Diretoria de Material de Aviação do Exército DMAvEx) a responsabilidade por sua elaboração, coordenação, acompanhamento e/ou gerenciamento. Esses projetos devem envolver modificações, revitalizações, modernizações, introdução de novos componentes ou sistemas de armas e aquisição de aeronaves. d. Algumas dessas responsabilidades poderão ser transferidas ao Comando de Aviação do Exército (CAvEx), a outras seções da DMAvEx, a empresas ou outros órgãos do EB. |
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Caso a manutenção modificadora envolva projeto que supere as possibilidades técnicas da DMAvEx, deverá ser encaminhada ao DCT, juntamente com estudo fundamentado nas InAvEx 100911. Por fim, após realizado o esforço de engenharia (Blocos 97, 34 e 35 das IG 20-12) para o desenvolvimento da modificação, em conformidade com os Arto 70 a 72 das NARMAvEx8, o material deverá ser submetido ao processo de avaliação, testes e certificação. Tais avaliações deverão ser conduzidas sob coordenação do Centro Tecnológico do Exército e do Centro de Avaliações do Exército (Blocos 37, 39 e 429), ainda que demandem apoio do Departamento de Ciência e Tecnologia da Aeronáutica (DCTA). |
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3. CONCLUSÃO | ||||
Remetendo à citação que abre este artigo, o objetivo de se seguir o ciclo de vida dos materiais é atender às demandas técnicas e operacionais, prevenindo surpresas pelos “desconhecimentos desconhecidos”. A expertise adquirida pelos fabricantes de componentes aeronáuticos, ao longo dos anos, muitas vezes provém de incidentes e de acidentes, e costuma-se dizer que suas normas são “escritas com sangue”. Observa-se, também, que o Exército Brasileiro não tem suficiente experiência na elaboração de projetos aeronáuticos, devendo empregar todos os seus recursos especializados – de maneira coordenada, conforme as normas em vigor – para que sinergicamente produzam as melhores soluções demandadas pelos usuários da Aviação do Exército. Em suma, à luz da normatização apresentada, propõem-se os seguintes passos para a manutenção modificadora: levantamento de deficiências das aeronaves pelo usuário (OMAvEx) e encaminhamento à DMAvEx, via Canal de Comando; caso supere suas possibilidades técnicas, a DMAvEx encaminha a demanda ao DCT, ou contrata empresa certificada para a execução do projeto; o produto deverá ser submetido a avaliação e testes, sob coordenação do CTEx e do CAEx; após avaliado, o produto deverá ser certificado por um órgão oficial do País (no caso, o Instituto de Fomento e Coordenação Industrial – IFI) ou do Exterior; finalmente, o produto entra na cadeia de suprimento, sob gestão da DMAvEx. |
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1 KRAUSS, Lawrence M. Um Universo que veio do nada: Porque há criação sem Criador. São Paulo: Paz e Terra, 2013. 207 p. Tradução de Alessandra Cavalli Esteche 2 EUROCONTROL EXPERIMENTAL CENTRE (França). European Organisation For The Safety Of Air
Navigation (Org.). REVISITING THE "SWISS CHEESE" MODEL OF ACCIDENTS. Brétigny-surorge:
Centre de Bois Des Bordes, 2006. 25 p. Disponível em: <http://www.eurocontrol.int/eec/gallery/content/public/document/eec/report/2006/017_Swiss_Cheese_Mode 3 REASON, James T.. The contribution of latent human failures to the breakdown of complex. Manchester: Philosophical Transactions Of The Royal Society Of London, 1990. 9 p. (B). Disponível em: <http://www.jstor.org/discover/10.2307/55319?uid=3737664&uid=2&uid=4&sid=21104011960833>. Acesso em: 13 abr. 2014. 4 BRASIL. Lei nº 5194, de 24 de dezembro de 1966. Regula o exercício das profissões de Engenheiro, Arquiteto e Engenheiro-agrônomo, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5194.htm>. Acesso em: 13 abr. 2014. 5 BRASIL. Lei nº 6496, de 7 de dezembro de 1977. Institui a " Anotação de Responsabilidade Técnica" na prestação de serviços de Engenharia, de Arquitetura e Agronomia; Autoriza a criação, pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA, de uma Mútua de Assistência Profissional; e dá outras providências.. Brasília, DF, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6496.htm>. Acesso em: 13 abr. 2014. 6 EXÉRCITO BRASILEIRO - ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO. EB20-MC-10.204: Logística. 3 ed. Brasília: EGGCF, 2014. 103 p. 7 DIRETORIA DE MATERIAL DE AVIAÇÃO DO EXÉRCITO. INAVEX 1005: AVALIAÇÃO E QUALIFICAÇÃO DE EMPRESAS E ORGANIZAÇÕES CIVIS E MILITARES. 2 ed. Brasília: Secretaria Geral do Exército, 2011. 51 p. 8 COMANDO LOGÍSTICO. NARMAVEX: NORMAS ADMINISTRATIVAS REFERENTES AO MATERIAL DE AVIAÇÃO DO EXÉRCITO. Brasília: Secretaria-Geral do Exército, 2009. 112 p. Disponível em: <http://portal.avex.eb.mil.br/publico/Publicacoes/NARMAvEx/NARMAvEx_2009.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014. 9 EXÉRCITO BRASILEIRO - ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO. IG 20-12: INSTRUÇÕES GERAIS PARA O MODELO ADMINISTRATIVO DO CICLO DE VIDA DOS MATERIAIS DE EMPREGO MILITAR. Brasília: Secretaria-Geral do Exército, 1994. 27 p. 10 DIRETORIA DE MATERIAL DE AVIAÇÃO DO EXÉRCITO. INAVEX 1006: ELABORAÇÃO, APRESENTAÇÃO, APROVAÇÃO E EXECUÇÃO DE PROJETOS DE ENGENHARIA NO ÂMBITO DA AVIAÇÃO DO EXÉRCITO. Brasília: Secretaria-geral do Exército, 2009. 37 p. Disponível em: <http://portal.avex.eb.mil.br/publico/Publicacoes/INAvEx/InAvEx_1006_Geral.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014. 11 DIRETORIA DE MATERIAL DE AVIAÇÃO DO EXÉRCITO. INAVEX 1009: MODELO DE PREVISÃO E ANÁLISE DO CICLO DE VIDA DE MATERIAL DE DEFESA AERONÁUTICO. Brasília: Secretariageral do Exército, 2010. 43 p. Disponível em: <http://portal.avex.eb.mil.br/publico/Publicacoes/INAvEx/INAvEx-1009.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014. |
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Maj QEM ALEXANDRE GALO LOPES | ||||